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Art. 489, § 1º, do Novo CPC: Panaceia ou letra morta?

*Artigo publicado originalmente em 2015 na Revista do Portal Jurídico Investidura

O novo Código de Processo Civil está sendo considerado uma grande conquista para os advogados, por conter em sua redação reivindicações históricas da classe, como parâmetros objetivos para a fixação de honorários de sucumbência, a contagem de prazos processuais apenas em dias úteis e a suspensão de prazos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro do ano seguinte – as chamadas “férias” do advogado. No entanto, nenhuma alteração trazida pelo novo código foi tão celebrada e, ao mesmo tempo, tão polêmica quanto o dever de fundamentar as decisões, expresso em seu art. 489.

Considera-se que a principal inovação trazida pelo referido dispositivo é o rol do seu § 1º, que elenca as hipóteses em que a decisão é considerada não fundamentada, no qual foram inseridas justamente as situações corriqueiras do diaadia forense mais frustrantes para os advogados, como, por exemplo, a famosa decisão que afirma que “o juiz não está obrigado a analisar todas as questões postas pela parte”.

No entanto, antes de analisar as inovações trazidas pelo CPC/2015, é necessário fazer uma ressalva: o dever de fundamentar as decisões não é novidade. Trata-se de dever imposto ao judiciário pela própria Constituição Federal, desde a sua redação original, promulgada em 1988:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[…]

IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes [1].

Na legislação infraconstitucional, o CPC de 1973 também já trazia o dever de motivar as decisões, em dispositivos que, inclusive, jamais foram alterados e permanecem com a redação original:

Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:

I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo

II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito

III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes Ihe submeterem.

Art. 165. As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso.

Portanto, vê-se que a única novidade trazida pela novo Código de Processo Civil, com relação à motivação das decisões, é justamente o já mencionado rol de hipóteses em que se consideram não fundamentadas as decisões, assim disposto:

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão

IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador

V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamento

VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Ocorre que tais hipóteses não surgiram da criatividade do legislador. São exemplos comuns de decisões com fundamentação precária com as quais os advogados se deparam e se frustram diariamente. Ora, se a obrigação de motivar as decisões já estava prevista na Constituição Federal desde 1988 e no Código de Processo Civil desde 1973 e, mesmo assim, frequentemente são proferidas decisões judiciais carentes de fundamentação adequada, não seria ingenuidade acreditar que uma nova lei reforçado tal dever mudará essa realidade?

Para responder a essa pergunta, é necessário que se faça outro questionamento: por que os juízes não fundamentam adequadamente suas decisões?

As razões para esse fenômeno são diversas. A primeira delas é da própria cultura do povo brasileiro: somos um povo de “alma litigiosa”. Somo passionais e não temos a cultura de resolver os problemas de maneira pragmática.

Soma-se à cultura do litígio o aumento exponencial da quantidade de faculdades de Direito no país, que, mesmo com o “filtro” imposto pelo Exame da Ordem, levou a um consequente aumento também exponencial da quantidade de advogados. Segundo levantamento [2], o Brasil terá 1 milhão de advogados em 2018. A grande quantidade de advogados gerou uma maior facilidade de acesso ao judiciário, que, embora não possa de maneira nenhuma ser considerada uma consequência negativa (pelo contrário!), levou a um inevitável crescimento da litigiosidade.

Por seu turno, os métodos extrajudiciais de resolução de conflitos ainda são pouco utilizados no Brasil. A arbitragem nunca se popularizou, devido ao alto custo, e a mediação e conciliação são tratadas da forma mais ingênua possível, de uma maneira que beira a “vamos todos dar as mãos e sermos amigos”, quando deveriam, na verdade, serem encaradas como formas de contenção de prejuízos em razão dos custos e tempo perdido com a longa duração de um processo judicial – algo que também pode ser explicado pela tradicional falta de pragmatismo do brasileiro.

Além disso, há a tradicional ineficiência do Estado brasileiro, que foi incapaz de, ao longo dos anos, estruturar e aparelhar o Poder Judiciário para acompanhar o crescimento demográfico do país, o aumento da litigiosidade e a evolução da tecnologia. O resultado não poderia ter sido outro: os juízes são completamente incapazes de suportar a demanda.

Os próprios magistrados não contribuíram para melhorar essa realidade. Embora existam mecanismos para coibir abusos do direito ao acesso à justiça, eles geralmente não são utilizados. Não são raras as oportunidades em que processos manifestamente desprovidos de alguma das condições da ação ou com petições iniciais claramente ineptas deixam de ser extintos logo após o ajuizamento, para serem analisados somente após longa instrução. As multas para punir a litigância de má-fé e os atos atentatórios à dignidade da justiça também são raramente aplicadas, apenas para casos muito extremos.

Ademais, há a falta de cultura de respeito à jurisprudência no país. Os tribunais brasileiros são extremamente voláteis e mudam de posicionamento com muita frequência, sem sequer motivar a mudança de entendimento, e os juízes singulares, consequentemente, dão pouca atenção aos precedentes e preferem julgar de acordo com a própria convicção. A falta de coerência na jurisprudência resulta em falta de segurança jurídica, um dos problemas mais graves do país, que traz, entre outras consequências, a ideia de que qualquer tese jurídica poderá ter sucesso em uma ação, pois geralmente será possível encontrar algum precedente que a ampare, o que só contribui com o aumento da litigiosidade.

A reforma do Poder Judiciário ocorrida em 2004 por meio da Emenda Constitucional nº 45 tentou mudar a realidade do excesso de demanda, introduzindo princípios como o da celeridade e razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII). No entanto, é evidente que não houve melhora, pois nunca foi a falta de princípios constitucionais que ocasionou a longa duração dos processos.

Outra tentativa para conseguir julgar o grande volume de processos acumulados no Poder Judiciário são as famosas metas do CNJ. No entanto, como uma meta evidentemente não substitui a estrutura necessária e compatível com a demanda, os processos acabam sendo apreciados sem a atenção necessária, apenas para cumprir a meta. Deixa-se de fazer justiça para fazer estatística.

Como se pode ver, nenhuma das tentativas de resolver o problema de falta de celeridade da prestação jurisdicional em um “canetaço” foi capaz de solucioná-lo. Primeiro, porque atacamos a consequência, ignorando as causas. E segundo, porque tentamos promover uma mudança cultural por meio de uma mudança legislativa.

No Brasil, temos a péssima tradição de tentar resolver um problema criando uma lei. E se essa lei criar um novo problema, inventamos uma nova lei para solucioná-lo. Isso nunca funcionou.

O art. 489, § 1º, do novo CPC nada mais é do que a mais nova expressão dessa tradição pátria: um “canetaço” que tenta resolver o problema da falta de fundamentação das decisões, que, na verdade, decorre do excesso de demanda do Poder Judiciário, que, por sua vez, decorre de uma série de fatores. Novamente as causas são ignoradas e o foco é apenas a consequência.

Os juízes não deixam de fundamentar as decisões adequadamente porque simplesmente não querem; deixam de fundamentar porque não conseguem. E é pela mesma razão que não conseguirão cumprir o disposto no art. 489, § 1º, do CPC/2015.

Embora o novo CPC esteja trazendo novos mecanismos para dar mais celeridade aos processos, tais como o incidente de resolução de demandas repetitivas, o sistema de precedentes e a estabilização da tutela de urgência, há também razão para crermos que as ações poderão ter trâmite ainda mais demorado, em razão da dilatação de alguns prazos processuais, a contagem de prazos apenas em dias úteis e a existência de audiência de conciliação obrigatória (uma contradição em termos!) em todas as ações. No fundo, apesar das mudanças introduzidas, a estrutura do processo civil brasileiro não mudou, bem como também não mudou a estrutura do Poder Judiciário e, principalmente, a nossa cultura também não mudou.

Se hoje nos deparamos com a famosa decisão que afirma que “o juiz não está obrigado a analisar todas as questões postas pela parte”, com o novo CPC, passaremos a ver a mesma decisão acrescida de uma nova linha: “a decisão embargada/recorrida não se enquadra em nenhuma das hipóteses do art. 489, § 1º, do CPC”, que, provavelmente, também não será fundamentada. Bastará adequar os modelos e pedir para que os estagiários o repliquem.

E assim, quando percebermos que nada mudou e que continuamos enfrentando os mesmos problemas, talvez alguém apareça com uma solução genial: vamos criar uma lei!


[1] Embora o inciso tenha sido modificado pela Emenda Constitucional nº 45, o dever de fundamentação das decisões permaneceu inalterado: “IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.

[2] Fonte: http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/101/artigo327190-1.asp

Bruno de Oliveira Carreirão
Bruno de Oliveira Carreirão

Advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, pós-graduado em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito – EPD e membro das Comissões de Direito Urbanístico e Direito Imobiliário da OAB/SC, da Associação Brasileira de Direito e Economia - ABDE e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.

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