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A Pastelaria (ou Muquifo) e a judiada Liberdade de Expressão

Repercutiu nacionalmente a decisão da 1ª Câmara de Direito Civil do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que manteve a condenação de uma mulher por ter chamado de “muquifo” um estabelecimento comercial em uma rede social. Infelizmente, não é a melhor das notoriedades para o Judiciário Catarinense, pois esse é mais um caso que demonstra que o Brasil ainda tem longo caminho a trilhar até compreender o que é o direito à liberdade de expressão.

Para aqueles que não acompanharam, cabe uma breve recapitulação: a ação foi proposta por conta de um comentário publicado no Facebook a respeito de uma pastelaria, com os seguintes dizeres:

“[…]. Fiquem bem ligados onde vcs lancham quando vem para o centro da cidade, porque eu moro nos fundos de um MUQUIFO, que se diz uma “cozinha industrial” de uma pastelaria no centro mesmo de Criciúma, que fica aqui pelo terminal, e se vcs imaginassem a porquice, sujeirada, nojerada, o fedorão, a maneira que é feito os alimentos, e o tanto de irregularidades que se encontram nessa “cozinha” nunca mais iriam comer la.. Pra vcs terem ideia, até rato morto na escada que da acesso a cozinha tem…[…]”[1].

Consta ainda nos autos que o referido comentário foi compartilhado por 15 outras pessoas e que o estabelecimento criticado foi identificado. Por essa razão, a pessoa jurídica propôs a ação, alegando ter sofrido dano moral. A ação foi julgada procedente e a condenação foi mantida pelo Tribunal, sob os fundamentos de que o “direito de expressão não é absoluto” e de que a ré, então recorrente, “excedeu seu direito a informar e opinar”

Tal decisão é mais uma demonstração do pouco valor dado pelo Poder Judiciário à liberdade de expressão no Brasil. Via de regra, em casos que envolvem liberdade de expressão, o julgador brasileiro deixa de lado a hermenêutica e a argumentação jurídica, para apreciar o caso conforme seu gosto ou desgosto particular a respeito de determinada forma de expressão, julgando ao seu alvedrio. Substitui-se o Direito pela moral.

Antes de mais nada, cabe lembrar que a demandante em questão era uma pessoa jurídica. Embora já tenha sido polêmica a questão da possibilidade de a pessoa jurídica poder sofrer dano moral, hoje já é bastante sedimentado que a pessoa jurídica pode sim ter a sua honra objetiva abalada, quando há prejuízo a seu bom nome, fama e reputação[2].

Estabelecida essa premissa, cabe questionar: qualquer manifestação que abale o bom nome de uma pessoa jurídica enseja a reparação civil? Em uma leitura séria da Constituição e do Código Civil, a resposta não poderia deixar de ser não, pois tal manifestação pode ser tanto um ato ilícito quanto um exercício regular de direito.

A Constituição não protege apenas as formas de expressão consideradas educadas ou simpáticas, pois estas, aliás, nem precisam de proteção. O direito à liberdade de expressão é, principalmente, o de dizer aquilo que os outros não querem ouvir.

Por isso, ainda que os comentários publicados no caso comentado tenham sido ácidos e deselegantes, tratam-se de formas constitucionalmente protegidas de expressão do pensamento, porque a proteção à liberdade de manifestação é neutra. Sobre esse assunto, aliás, não há obra mais elucidativa do que a do professor João dos Passos Martins Neto:

O valor expressivo não é, além disso, atributo de um tipo específico de opinião, a assim chamada politicamente correta, que soa bem aos outros, que não melindra o pudor, que não desafia o inquestionável, que não afronta a ética dominante. Valor expressivo não tem só as opiniões simpática condescendentes, virtuosas, tradicionais, nem somente aquelas cuja apresentação obedece à elegância ou suavidade de estilo[3].

Não estou com isso afirmando categoricamente que a manifestação a respeito da pastelaria se tratou de mero exercício regular do direito de se expressar, porque no comentário havia afirmações fortes, a respeito de falta de higiene e de já ter sido encontrado um rato morto no local. O problema é que não foi isso que foi analisado na decisão. Não consta no acórdão uma mísera linha a respeito da veracidade ou falsidade dos fatos relatados no comentário pejorativo, o que revela que a condenação se deu pelo mero tom empregado e que o parâmetro eleito como limite para o direito da moça foi o gosto pessoal dos Desembargadores.

É curioso compararmos a forma com que o tema é tratado no Brasil com a jurisprudência dos Estados Unidos, pois a liberdade de expressão é um direito fundamental protegido pelas Constituições de ambos os países. É na forma de interpretar tal direito, contudo, que existe um verdadeiro abismo.

Um dos casos sobre liberdade de expressão mais famosos julgados pela Suprema Corte dos EUA é o caso Hustler vs Falwell. Em suma: o Campari havia publicado uma série de anúncios em revistas intitulados “a primeira vez”, para falar a primeira vez que as pessoas retratadas provaram Campari, mas, por insinuação, também sua primeira relação sexual. A revista Hustler publicou o que chamava de um “anúncio-paródia”, dizendo que a “primeira vez” de Jerry Falwell, conhecido líder religioso nos EUA, tinha sido com sua mãe em um banheiro químico. Por conta disso, Falwell moveu uma ação por difamação e imposição intencional de sofrimento emocional.

Nesse caso, a Suprema Corte, em sua decisão, declarou:

O fato de que o discurso em questão é ultrajante não é uma base suficiente para submetê-lo à reparação por dano.

Porque seguir em frente nesta base permitiria aos julgadores impor responsabilização com base em gostos ou pontos de vista e talvez com base no desgosto deles por uma expressão particular[4].

No Brasil, uma decisão como a tomada pela Suprema Corte no caso Hustler vs Falwell certamente seria cercada de muita polêmica, enquanto que a decisão do TJSC envolvendo a pastelaria foi até elogiada. Isso acontece porque o povo brasileiro ainda não compreendeu o valor democrático da liberdade de expressão.

John Stuart Mill, em sua clássica obra Sobre a Liberdade, defendia o direito à livre expressão por ser benéfica na busca pela verdade. Nas palavras dele:

O mal particular em silenciar a expressão de uma opinião é que constitui um roubo à humanidade: à posteridade, bem como à geração atual; àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que a sustentam. Se a opinião for correta, ficarão privados da oportunidade de trocar o erro por verdade; se estiver errada, perdem uma impressão mais clara e viva da verdade[5].

Nas relações de consumo, o exercício da liberdade de expressão é especialmente valioso, pois proporciona aos potenciais consumidores de um determinado produto ou serviço a oportunidade de saber a opinião daqueles que já o consumiram ou o conhecem. Não é à toa que as páginas das empresas no Facebook contam com mecanismos de avaliação e que sites como o Reclame Aqui são tão populares.

Por isso, com a decisão do Tribunal, não perde apenas a condenada, mas toda a sociedade, pois é mais um precedente de que divulgar uma impressão pessoal a respeito de um estabelecimento comercial, ainda que verídica, pode render uma condenação, desestimulando uma prática salutar para o mercado.


[1] Confira aqui a íntegra do acórdão: Apelação Cível n. 0113724-88.2014.8.24.0020

[2] O STJ fixou esse critério diferenciador no REsp 60.033/MG.

[3] MARTINS NETO, João Dos Passos. Fundamentos da Liberdade de Expressão. Florianópolis: Insular, 2008, p. 75.

[4] No original: “The fact that the speech at issue is outrageous is not a sufficient basis to subject it to tort liability. For if you went ahead on this basis it would allow jurors to impose liability on the basis of tastes or views and perhaps on the basis of theirs dislike of a particular expression” (Hustler Magazine v. Falwell, 485 U.S. 46, 1988)

[5] MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 19.

Bruno de Oliveira Carreirão
Bruno de Oliveira Carreirão

Advogado, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, pós-graduado em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito – EPD e membro das Comissões de Direito Urbanístico e Direito Imobiliário da OAB/SC, da Associação Brasileira de Direito e Economia - ABDE e do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário.

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